Em entrevista exclusiva, a designer de produção Felicity Abbott, responsável pelo projeto cenográfico do The Luminaries—uma minissérie que se passa na Nova Zelândia durante a corrida do ouro de 1860—falou sobre seu processo de trabalho e os desafios impostos pela industria cinematográfica.
Fabián Dejtiar (FD): Todo este tempo você esteve trabalhando lado a lado com o seu colega Daniel Birt, decorador de cenários neozelandês. Vocês desenvolveram uma profunda pesquisa para então projetar e construir os cenários da minissérie sobre o período da corrida do ouro na Nova Zelândia colonial. Você poderia nos contar um pouco mais sobre este processo? Como vocês traduziram todas estas informações para os sets de filmagem?
Felicity Abbott (FA): Ao longo dos últimos anos, o design de produção passou a ser conhecido como a “arquitetura da tela”, o que nos faz pensar na estreita relação entre estas duas disciplinas. O designer de produção é aquele profissional que se preocupa com o espaço arquitetônico que será filmado, a imagem que transporta o espectador para dentro da história que está sendo contada. Em meu trabalho eu frequentemente incorporo elementos cenográficos capazes de criar significado e construir narrativas específicas, ou então para reforçar uma determinada característica de um personagem.
Na adaptação do roteiro original para a minissérie The Luminaries, buscamos inspiração nos mesmos princípios astrológicos que determinam o tom deste clamoroso romance escrito por Eleanor Catton em 2013, construído uma narrativa visual a partir dos signos do zodíaco relacionados à cada personagem. Para isso tivemos que desenvolver um vasto trabalho de pesquisa, o qual foi então traduzido e adaptado com a ajuda de ferramentas de visualização e modelagem 3D, nos levando a refinar as ideias e conceitos para chegar ao projeto final e a construção do cenário. Depois de tudo isso tudo pronto, começam os trabalhos de decoração do cenário que antecedem as filmagens.
Isso tudo para dizer que, para mim, o design de produção é como “construir realidades”. É uma forma de interpretar a “poética” do espaço através da emoção, do subconsciente, da memória e da nostalgia, apropriando-se de tons, estilos, cores e texturas. Projetar a imagem da realidade do The Luminaries envolveu a construção de uma variedade de elementos arquitetônicos representativos da Nova Zelândia do final do século XIX. De fachadas neo-góticas a espaços interiores densos de fumaça de ópio, chalés de madeira a delegacias de polícia. Considerando isso, é evidente que este projeto demandou a construção de estruturas de diversos estilos arquitetônicos capazes de criar uma conexão visual que ecoasse o período histórico no qual a novela se passa; vilas rurais chinesas construídas em pedra e madeira, samambaias e muita lama; minas de ouro, acampamentos e barracas, tudo isso e muito mais.
FD: Para a produção da minissérie construímos ao todo 96 diferentes sets de filmagem do zero em toda a Nova Zelândia, o que diferencia esta série das demais produções similares produzidas na Europa e nos EUA. Como você conseguiu dimensionar todo esse trabalho? Como você faz para cumprir prazos, uma vez que a indústria cinematográfica opera com extrema rapidez? De onde vem tanta experiência?
FA: Foi um enorme desafio cumprir os diferentes prazos dos 6 episódios da minissérie. Para isso precisamos planejar um cronograma rigoroso, prever situações climáticas imprevisíveis e lidar com recursos limitados. O design de produção é um ofício que procura equilibrar todas estas variáveis, um processo que envolve muito comprometimento e criatividade para preservar a integridade do design e a idéia do diretor, ao mesmo tempo que precisamos respeitar as condições de orçamento e o cronograma pré-estabelecido.
Produzir cenários que retratam um determinado período histórico requer uma combinação única de precisão, autenticidade e, neste caso específico, um toque de modernidade no design e na decoração para potencializar o mistério implícito na narrativa. Embora estivéssemos trabalhando o tempo todo na construção de cenários de uma certa escala, fomos muito cuidadosos quanto aos detalhes, essenciais para criar profundidade e credibilidade.
Um dos principais sets de filmagem é a “Casa dos Muitos Desejos”, o ambiente da personagem de Lydia Wells (Eva Green). Um edifício de madeira de 4 pavimentos em estilo gótico “continental”, com fachadas salientes e chaminés em estilo Tudor. A casa dos muitos desejos, excêntrica por natureza, foi construída junto ao set da rua Dunedin e contrasta fortemente em relação aos demais edifícios do entorno.
O set foi construído em partes—a fachada externa da casa foi pré-fabricada fora do canteiro de obras de produção e os interiores foram construídos em várias etapas, começando pelos salões do térreo, o átrio, a cozinha, os corredores, quartos, salas e o sótão. Pequenos detalhes ajudam a construir a narrativa e a definir o tom das cenas, ao mesmo tempo que esta sobreposição de camadas assumem um caráter próprio. Criamos o cenário interior da casa como uma espécie de “palco” que se desdobra em seus dois salões, os quais se revelam através de uma arcada monumental e uma escadaria escultural, as quais desempenham um papel central em algumas das principais cenas. O interior elaborado ecoa em seus detalhes a exuberância de suas fachadas: painéis em alto e baixo relevo, frontões, vigas decoradas com motivos florais nativos da Nova Zelândia, papéis de parede e vitrais pintados à mão.
O design de produção leva em consideração questões relativas à câmera, como campo de visão e profundidade de campo, assim como a distância focal e a relação entre um ponto e outro—elementos cruciais a serem considerados quando projetamos espaços cenográficos. Um dos muitos benefícios de se projetar e construir sets específicos para determinados fins, é a flexibilidade para explorar diferentes soluções. Do ponto de vista da arquitetura e do design, o design de produção é o ponto onde estas duas disciplinas se encontram, ditando o tom e o estilo responsáveis por construir a narrativa. Trabalhando em estreita colaboração com o diretor e o cinegrafista, procuramos criar um conjunto de espaços coerentes e com o decorador, construir os cenários específicos. Com a colaboração dos diretores de arte, exploramos colocamos os cenários à prova, verificando todos os detalhes antes de partirmos para a ação.
FD: O The Luminaries foi premiado como o melhor design de produção no NZTV Awards. Eu me pergunto, qual foi o maior desafio ao longo deste processo?
FA: A Nova Zelândia é um país pequeno e remoto, sem muitos recursos disponíveis como em outros países. Este foi um projeto muito desafiador por estes e outros motivos, principalmente em se tratando da situação do momento, da escala e dos detalhes que a narrativa exigia. Tive a sorte de ter tido muito tempo para desenvolver o trabalho de pesquisa e desenvolvimento, uma vez que a riqueza das informações acumuladas foi essencial para o sucesso deste projeto. Obviamente precisamos mencionar o trabalho da nossa excelente equipe de criação. O que distingue o design de produção do The Luminaries de uma produção semelhante filmada no Reino Unido ou nos Estados Unidos é que cada um desses ambientes foi criado do zero, e não filmado em lugares existentes. Nesse sentido, a “realidade” foi construída do nada, e portanto, o desafio era muito maior.
A ausência de todos estes elementos, como carruagens, barcos e toda a indumentária, indisponíveis na Nova Zelândia, exigiu que pensássemos em tudo, incluindo a construção de um barco de três mastros, o GODSPEED. O barco, o cais e toda a marinha, incluindo o porto e a aduana. A água foi adicionada digitalmente no processo de pós-produção. Também construímos ruas vitorianas, e um pequeno vilarejo rural.
Cada projeto é um projeto diferente, e os muitos desafios de uma produção cinematográfica como esta nos oferecem a oportunidade de refinar e repensar a forma como desenvolvemos nossos projetos. Com o tempo eu aprendi que grandes desafios nos levam a produzir os trabalhos mais expressivos e inovadores.